Os Corpos Tornados Chão
26 a 28 maio'23
Sobre o momento:
É uma carta não carta. Uma espécie de carta. Escreve-se sempre para. Parte-se de um ponto e tem-se um destino. Nasce-se e morre-se. Vive-se assim. É um eco de uma carta. O que é na verdade uma carta? O que é na verdade uma vida? O que valem as duas? Vivemos num tempo em que uma carta vale mais do que uma vida, mas que uma carta, essa ou outra qualquer, se rasga com a mesma facilidade com que se morre. Transformámos o presente em nada. A memória já não conta e o futuro não existe. Ou existe enquanto comércio. Transformámos o presente em sobrevivência. Vivemos em fronteiras. Nunca queremos lembrar de onde vimos. Vergonha ou trauma, que importa. E estamos sempre impossibilitados de seguir, de mudar, de transformar. É a manutenção. Se essa espécie de carta chega ao destino, é a morte que acontece. É preciso não ter medo de morrer. Morrer é muita coisa. Morrer pode ser muito mais do que viver. Morrer é um corte. Um apagar. Mas é uma carta não carta o que escrevo. Escrevo para. Um destino. Morrer, claro. Cortar, claro. Apagar, claro. É preciso recomeçar. Não é mau recomeçar. Cortar laços, linhas, prisões, manutenções, bater no chão, é preciso bater no chão. É preciso querer bater no chão. É preciso perceber o que se quer, o que não se quer já não é suficiente. Há o tempo. Nunca esquecer o tempo. Num mundo sem tempo nunca esquecer o tempo. Mas o que é o tempo? O que é a memória? O que é uma carta? O que é morrer? De que valem os laços nas fronteiras? Não podemos esquecer o comércio do futuro. A sobrevivência. O imediato. Na lógica do imediato não há memória. Mas como se constrói sem memória? Ou pior, como se constrói a memória? Porque se constrói a memória? Simples, porque transformámos o futuro em comércio. Perdem-se os laços com a facilidade com que se rasga uma carta. Deixas de servir e cais.
texto e encenação
Pedro Fiúza
interpretação António Melo, António Pinto, Carlos Peixoto, Elisabete Diegues, Fernando Costa, Isa Rodrigues, Isabel Morais, Isabelle Couto, João Paulo Fernandes, Joana Alves Coelho, Margarida Baldaia, Maria Emília SIlva, Maria João Leite, Maria Moisão, Teresa Madureira (Tecas), Mariana Lobato, Mariana Santos, Paula Cristina Ferreira, Rita Manuelito e Sérgio Nogueira luz Rodrigo Gomes
figurinos Mafalda Costa