A Cidade Muda
26 a 29 maio'21
Uma cidade é uma máquina tal como é um corpo vivo. Nunca se fixa. É o seu movimento que lhe define a identidade. O teatro também. O teatro é movimento. A vida também. A vida é movimento. É a caminhar que se desenvolve este espectáculo. Um texto que se vai escrevendo como um fantasma. Andar nas ruas e de repente ter as vozes ou a voz dentro da cabeça. Muitas vezes de paz. Muitas vezes de revolta. Sempre com questões. Artaud diria: A vida é queimar perguntas. Seria absurdo não sentir o tempo. Este tempo. Seria absurdo não sentir o tempo em geral. O tempo é a única coisa que temos e não temos. Talvez seja por isso que quando ele parece suspenso a vida pareça também. A vida suspensa. Mas se a vida está ou se julga suspensa, o corpo não. O corpo insiste no seu percurso, no seu caminhar, na sua direcção. Às vezes perguntam-me porque falo tanto na morte, é simples, porque ela é inevitável. É também a morte que define o nosso tempo. Há dois acontecimentos que me definem filosoficamente a vida: o nascimento do meu filho e a morte do meu pai. Como escrever ou que teatro fazer depois desses momentos de brutalidade extrema? Desses dois pontos absolutamente antagónicos no sentir, como ficar depois disso, o que muda, o que nos muda? Será que estou também eu suspenso algures entre duas direcções de sensibilidade, algures numa espécie de purgatório, numa cidade deserta, sem vozes a não ser as vozes fantasmas, a dizerem que é preciso caminhar, que é preciso continuar, que é preciso viver, que é preciso trabalhar, que é preciso isto, que é preciso aquilo, que é preciso tudo. E às vezes é tão importante poder assumir o não saber. Os espectáculos também se fazem assim. Sem saber. São derivas. Intuições. Emoções. Sensibilidades. Vitórias e falhanços. Mas sempre à flor da pele. Porque o trabalho no teatro é à flor da pele, com o objectivo do osso, e quando se chega ao osso pode reconstruir-se o corpo a partir de dentro. Este espectáculo poderia ser feito de imensas formas, o texto é aberto, nós somos abertos também. Eu queria-o centrado em questões, mesmo que por vezes afirmativo, porque o mundo tem valores inquestionáveis também e não me venham com teorias, há valores inquestionáveis. Queria que ele fosse também uma questão dele próprio. Agora que penso nisso, talvez este seja o primeiro espectáculo que faço em que não tenho como objectivo criar uma espécie de universo paralelo estético que me crie outra realidade concreta. Este espectáculo é mais descarnado. Não posso negar as influências que por vezes são praticamente citadas na construção do próprio espectáculo, sejam elas de texto ou sejam elas de imagem. Para mim é um tiro no escuro. Escrevo este texto no dia da estreia e juro que ainda não sei que espectáculo é este, nunca fiz assim. Mas eu também não sei como estou, o mundo também não sabe como está, estamos todos um pouco no mesmo ponto. E então vamos fazendo o nosso espectáculo ao longo do caminho, o palco e a plateia. Vamos construindo o nosso diálogo. E com alguma sorte o diálogo permanece dentro de nós algum tempo. Sem que o esquecimento venha imediatamente a seguir. Não sabemos. Estou super orgulhoso por ter trabalhado com esta equipa. Foram bravos e audazes como todos os artistas devem ser. Levo-os para a vida. Estimado público, bom espectáculo. Que não saiam indiferentes.
Pedro Fiuza
(Texto escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico.)
texto e encenação Pedro Fiuza
interpretação Cristiana Castro, Edi Gaspar, Hélia Martins, Ivo Bastos, Luís duarte Moreira, Maria Quintelas e Tiago Araújo
cenografia e figurinos Cátia Barros
desenho de luz Mário Bessa
música João Vieira
assistente e construção de cenografia Filipe Mendes
apoio a cenografia Alberto Elísio e Tomás Almeida Gomes
execução de figurinos Maria da Glória Costa
direção técnica Pedro Vieira de Carvalho direção de cena Jessica Duncalf
montagem e operação de luz Tiago Silva e João Brito
montagem e operação de som Fábio Ferreira e Ruben Mendes
produção executiva Rosa Bessa
direção de produção Glória Cheio
cartaz Francisco Elias agradecimentos Eduarda Neves e Mário Quinaz (Cromopolis)