Lear

29 março a 07 abril'23
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Teatro do Bolhão em coprodução com TNDM II e Casa das Artes de Famalicão
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Palácio do Bolhão
Lear

AS COISAS MAIS SIMPLES

O que mais me impressiona no teatro é a dedicação altruísta que as equipas prestam ao exercício teatral. Nós, fazedores de teatro, não sei por que tipo de feitiçaria, dispomo-nos a conceder energia ilimitada aos processos de criação. Passamos meses a fio a observar-nos uns aos outros, a repetir vezes sem conta as mesmas cenas, as mesmas frases, tentando escavar algures na nossa memória, corpo e respiração, a forma justa de interpretar uma palavra, um gesto. E, não contentes, repetimos. Não contentes, deitamos todo esse trabalho fora e retomamos de novo. As semanas passam e o ritmo cardíaco acelera, a inquietação aumenta, passamos pela inevitável fase de desacreditar em tudo o que construímos. Bate à porta da nossa consciência o síndrome de impostor. Quantas vezes! Os sonos são atormentados por pesadelos infindáveis, duram toda a noite, ou pelo menos parecem durar. O mais comum de todos: estar em cima do palco, a apresentar uma peça que não se ensaiou, com uma plateia repleta de pessoas a verem-nos a “afogar em cena”. Curiosamente, nesses sonhos os palcos nunca têm alçapões, pois seria a escapatória mais airosa de uma tão grande humilhação pública. 
Apesar deste angustiante labor cheio de incertezas, a equipa avança depositando a sua confiança no olhar dessa pessoa que se coloca de fora a observar e dirigir – o encenador. E é sobretudo nesse papel de observador que a generosidade das equipas se mostra mais evidente. A humildade com que cada elemento se lança ao serviço de uma história que se conta em palco a várias vozes, 
oferece ao teatro a qualidade de uma grande força coletiva.
Encontramos uma generosidade semelhante naqueles que dedicam toda uma vida a ensinar a razão das coisas: os professores. Também eles nos contam a história do mundo, talvez na expetativa de que a partilhemos mais tarde com outros. 
Desta feita, tentei nesta peça, tentámos todos, devolver aos mestres, nossos antigos professores, a aprendizagem maturada pelo tempo, guiando-os nesta épica aventura teatral que é colocar em cena uma das mais complexas obras dramatúrgicas, a peça Rei Lear, de William Shakespeare. Tal como Cordélia, agimos de forma despojada, contando a história com recursos simples, encontrando nessa simplicidade a força cénica de uma obra que se vai ensaiando e ganhando forma diante do público à medida que a ação avança. Tudo é feito às claras e todos os artifícios e mecanismos expostos aos olhos de todos, colocando em evidência uma obra inacabada e que se ensaia há mais de quatrocentos anos. 
Espero ter conseguido devolver a generosidade que tantas e tantos depositaram nesta peça. Gosto de pensar nela como um ensaio que perdura no tempo, talvez pela vontade de fazer perpetuar a alegria coletiva que lhe deu forma. 
“Estranha é a arte da necessidade, que torna preciosas as coisas mais simples.” – William Shakespeare

Joane, 13 de março de 2023
Bruno Martins


LEAR

Durante alguns meses, andei às voltas do texto de Shakespeare, Rei Lear, com um intuito preciso: tentar encontrar a ponte que nos permitisse ler o clássico sem ser apenas na forma literária; quer dizer, tentar criar uma versão que servisse tanto o leitor de sofá com o leitor sentado na plateia do teatro. Para tanto, muni-me da cuidadosa e intensa tradução de Álvaro Cunhal e da mais recente e 
fidedigna tradução de Fernando Vilas Boas. Confesso que estes meses em permanente luta com um texto que se atravessa no nosso pensamento de forma tão intensa, tornou o meu receio da passagem para o palco menos doloroso e criou, ao mesmo tempo, uma curiosidade muito forte para perceber os jogos e os lugares de espaço e de tempo a serem absorvidos por intérpretes e restantes criadores. Jogos diversos, curiosos, estranhos e até desumanos que seriam jogados por uma extensa geração de actores que frequentaram todos a mesma escola e se cruzaram todos com professores que agora teriam aqui como companheiros de jornada.  Esta luta que travei com o texto, antes de o apresentar para o exercício de leitura dramática, condensou em mim a ideia de que Shakespeare sempre foi mais do teatro que da literatura. Ou melhor: que se serviu do drama, para acrescentar acção humana à própria literatura. Não pode estar dissociado da literatura mas, para gáudio de todos aqueles que amam o teatro, o seu dia a dia foi construído no palco e, para isso, serviu-se da sua capacidade de  construir literatura para, no jogo com os outros, repensar e criar uma estruturada ideia de texto dramático.  É fácil entenderem-se os universos de acção do texto e se, a exemplo do que diz Harold Bloom, a montagem de Lear fica sempre aquém da sua leitura, também é fácil entendermos que, sem a sua montagem, Lear não criaria tão intensa experiência na sua leitura. Porque é de literatura dramática que se trata; porque, sem entender os jogos que estas conturbadas personagens criam entre si, nunca entenderíamos o texto literário ou, melhor ainda: sem entendermos os jogos que entre elas criam estas personagens, nunca entenderíamos tão profundamente o género humano. O texto aí está, como entendo que deve ser servido: em cima do palco. Que o prazer de o ouvir seja capaz de ir para além do prazer de o ler, é o nosso desafio.  As imensas camadas que transporta, às quais juntámos camadas que nós próprios transportamos, possam servir de pasto à fome que estes tempos tão alheios à ideia de imaterial, nos têm servido. E que, na comunhão fervorosa da arte, possamos entender ainda hoje o quanto estamos devedores do génio humano.                

António Capelo
(Texto escrito ao abrigo do antigo acordo ortográfico)

 

assistência de encenação
Cláudia Berkeley
Hélia Martins
dramaturgia
António Capelo e Bruno Martins a partir da tradução
de Álvaro Cunhal (direitos da tradução cedidos pela
Editorial Avante!) e Fernando Villas Boas
interpretação
Anabela Sousa
Ana Fonseca
António Capelo
Eduardo Breda
Inês Garcia
João Figueiredo
João Paulo Costa
Matilde Cancelliere
Paulo Calatré
Pedro Couto
cenografia
Catarina Barros
figurinos
Cátia Barros
desenho de luz
Valter Alves
composição e direção musical
Tiago Manuel Soares
assistência figurinos
Rúben Ponto
Tomás Gomes
apoio figurinos
Cristina Ferreira
operação de luz
João Brito
Operação de som
Tomé Lopes
apoio montagem
Rodrigo Gomes
produção executiva
Rosa Bessa
direção técnica
Pedro Vieira de Carvalho
mestre costureira
Maria da Glória Costa
comunicação
Nuno Matos
fotografias de cena
©TNDM II , fot. Filipe Ferreira (2023)
direção de produção
Glória Cheio
Raquel Passos
produção
Teatro do Bolhão
Teatro da Didascália
coprodução
Teatro Nacional D. Maria II
no âmbito do projeto Odisseia Nacional
Casa das Artes de Famalicão