EDELWEISS

15 fevereiro a 02 março'24
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Teatro do Bolhão
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Palácio do Bolhão
EDELWEISS

Da memória e do registo quando se enleiam


Por detrás de Edelweiss há toda uma profusão de camadas, enleando memória e registo. Há um texto de teatro urdido no exílio, na Dinamarca, entre 1935 e 1938, que na sua essência repercutia notícias de jornais que davam conta, na Alemanha do Terceiro Reich, de episódios, situações, movimentos que expunham a céu aberto um regime totalitário extremamente repressivo e autoritário, às portas de uma nova guerra mundial. E com essa obra, toda uma tradição ocidental contemporânea entra em marcha: inegavelmente, Terror e Miséria no Terceiro Reich constitui-se como uma das peças de teatro mais representadas no mundo ocidental (incluindo em Portugal).

Num horizonte bastante mais próximo, em 2006, foi criada uma adaptação livre da peça original. A Flor preferida de Adolf Hitler, tratou-se de uma PAP (Prova de Aptidão Profissional) de boa memória da ACE Escola de Artes (então Academia Contemporânea do Espetáculo), e desdobrava-se também a partir do título de uma canção de propaganda fascista – Adolf Hitlers Lieblingsblume ist das schlichte Edelweiß / A flor preferida de Adolf Hitler é a simples edelweiss –, buscando observar o homem comum alienado, em tempo de lua de mel com o seu novo regime. Podemos fazer sempre uma analogia directa entre este período da História e qualquer outro regime totalitário que “trabalha” a ignorância, a neutralidade, o alheamento do seu povo, tal como o que hoje se desenvolve entre os seres humanos tardomodernos numa democracia liberal…

Durante praticamente 18 anos, regressar a esta encenação esteve insistentemente nas cogitações dos anteriores alunos-participantes – alguns já profissionais desde aí –, assim como que da própria ACE e do Teatro do Bolhão. Mas criadas essas condições, seria impossível revisitar o espetáculo anterior sem perceber que passaram duas décadas. Os nossos corpos não são os mesmos – os corpos dos que vêem e fazem –, o momento político e social agudiza-se, a nossa maturação artística está também noutra fase.

Hoje, em Portugal, estamos às portas de uma eleição legislativa muito importante, dentro dos 50 anos do 25 de Abril. Dadas as inquietações crescentes acerca do garante de referências e princípios, até há bem pouco tidos como elementares, surge agora este Edelweiss. A globalização digital ganhou contornos muito mais expressivos e as democracias liberais encontram-se mais frágeis ainda, sem resposta a problemas vários expostos pela aceleração da circulação do dinheiro, da informação e da comunicação.

Hoje já não falamos propriamente de um problema repressivo (ou disciplinador), ao contrário do alemão comum do Terceiro Reich que Brecht tão cirurgicamente retrata. A alienação provém de uma permissividade, de uma morbidade que ocorre justamente pela negação e afastamento de conflitos, antagonismos, diferenças e resistências, como uma doença cancerígena nos corpos, nas instituições, nos grupos, nas ideias. É à luz deste contexto feito de inúmeras invisibilidades e aparências positivas que este Brecht se reergue e se adapta.    

Independentemente da profusão de significados, conotações, metáforas, simbologias e lendas em torno desta flor da família das margaridas, a edelweiß (ou pé-de-leão, flor que se desenvolve nas altas montanhas da Europa, principalmente nos Alpes) foi o objeto de uma canção de propaganda (depois banida por se considerar kitsch), foi também o símbolo de uma unidade militar (as Waffen SS Edelweiß) ou ainda o nome de um grupo de resistência contra o regime nazi (os Edelweißpiraten).

As palavras – os seus diversos e por vezes antagónicos significados, esse mote que faz urgir ações e depois novas palavras – são o que fazemos com elas. Tudo é uma escolha, e nos tempos que correm a neutralidade é uma das escolhas mais políticas e demolidoras. Os acomodados e indiferentes, os que não marcam posições, os que apenas se manifestam nas águas turvas de um suposto senso comum, moda, maioria, clientela ou simplesmente hedonismo constroem avidamente esta distopia que já ninguém refuta.

Nestes tempos hodiernos “em que se tem que defender o óbvio” (como sobejamente Brecht se vem citando), tem que ser enfrentada em toda a linha como se, diante de nós, um opressor fardado em cima de um palanque, com o seu toothbrush moustache, aos berros e de olhar carregado de ódio nos apontasse persecutoriamente o dedo. Como coisa concreta, palpável, visível, e não nessa realidade feita de transparências várias. É preciso vê-lo, fardá-lo, colocá-lo em cena diante dos nossos olhos. É preciso VER.

 

dramaturgia, versão e encenação Nuno Pino Custódio
a partir de Terror e Miséria no III Reich de Bertolt Brecht

interpretação  Anabela Sousa, Borzyak, João Paulo Costa, João Cravo Cardoso, João Tarrafa, Maria do Céu Ribeiro, Sílvia Santos, Pedro Couto, Pedro Estima, Rebeca Cunha e Teresa Queirós cenografia, figurinos e adereços Cátia Barros   
luz Mário Bessa   
sonoplastia Fábio Ferreira   
intérprete de língua gestual Cristiana Ferreira   
fotografia Pedro Figueiredo   
registo vídeo Vasco Santos   
direção de produção Glória Cheio e Pedro Aparício   
produção executiva Rosa Bessa   
direção técnica Pedro Vieira de Carvalho   
direção de cena Jessica Duncalf   
montagem técnica João Brito, João Félix, João Martins, Liliana Macedo, Melissa Silva e Tomé Lopes   
operação de som João Félix   
operação de luz João Brito   
execução de cenografia Filipe Mendes, Maria Inês Campos e Rúben Ponto   
apoio a figurinos Cristina Ferreira e Mafalda Costa